Cálculos matemáticos existem desde a Pré-História. Mas podemos dizer que algarismos não. Quando eles chegaram ao Ocidente, jogaram a Europa em uma revolução que transformou o conhecimento
por Claudia Castelo Branco e Felipe Van Deursen
link original http://super.abril.com.br/historia/vida-numeros-643794.shtml
Se hoje Pisa tem a torre torta mais famosa do mundo, isso se
deve à sua pujança na Idade Média. O monumento começou a ser erguido em
1173, a fim de celebrar a boa fase econômica da cidade italiana. Seda,
porcelana, couro, especiarias, passava de tudo por lá. O impulso
mercante só não era maior porque comerciantes e consumidores tinham um
problema, compartilhado com outros grandes centros da Europa: fazer
contas era muito difícil. Não havia um sistema numérico que facilitasse a
vida das pessoas (se você tem dificuldades com números, agradeça por
não ter nascido naquela época). Os algarismos 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8,
9 eram desconhecidos dos europeus. Tarefas como uma simples adição não
era para qualquer um. Imagine um administrador alfandegário somando
CCXXXII sacas de trigo com MDCCCLII garrafas de vinho. Demoraria para
chegar à resposta (MMLXXXIV, também conhecido como 2 084). E calcular
isso não soa difícil porque não estamos acostumados aos algarismos
romanos. Mas sim porque o sistema tinha muitas limitações, como a
ausência do zero, essencial para fazer contas. Ou seja, calcular era
para poucos.
As
operações aritméticas são mais novas no Ocidente que diversos
conhecimentos sobre geometria e matemática, como os teoremas dos gregos
Pitágoras e Tales. Catedrais da Europa medieval, como a Notre-Dame de
Paris, além da própria torre de Pisa, foram construídas com base em
cálculos muito mais difíceis de realizar sem o suporte dos atuais
algarismos. E, se era mais complicado para obras de reis e papas, não
era mais fácil para o homem simples. Pelo contrário. Na Idade Média, os
europeus se viravam contando nos dedos e lendo algarismos romanos. E o
que mais se aproximava de uma calculadora era um instrumento rústico
chamado ábaco (veja mais no boxe abaixo).
Mas a situação começou a
mudar no século 12. Para a sorte da cidade toscana, havia ali um
matemático chamado Leonardo de Pisa. Ele se tornaria mais conhecido pelo
apelido Fibonacci, nome de uma sequência numérica aplicada na biologia,
nas artes plásticas e em outros campos (veja mais na pág. 70). Porém,
pesquisadores começam a repensar o lugar de Leonardo na história.
É graças a ele - e aos matemáticos que o seguiriam - que hoje temos uma
das maiores invenções da humanidade: os algarismos indo-arábicos.
Pré-história do número
Em
um dos famosos quadrinhos Calvin & Haroldo, de Bill Watterson, o
pai do menino pergunta o que ele queria ser quando crescer. Calvin
desejava, como quase todo garoto da sua idade, algo longe da matemática.
Refletiu sobre como ter uma vida 100% ausente de números, esses
torturadores de crianças nas escolas. "Vou ser um... um... homem das
cavernas!", respondeu. Ele chegou perto. Só que até mesmo os homens
primitivos dependiam de cálculos e números para sobreviver. Saber que 1
antílope era mais fácil de caçar do que 4 era essencial.
Pequenas
quantidades são percebidas diretamente tanto por humanos quanto por
outros animais. Uma galinha sabe se sua ninhada foi mexida, por exemplo.
Isso se chama percepção numérica. A contagem, entretanto, é um atributo
humano, intimamente ligado ao desenvolvimento da inteligência.
Não
se sabe quando o homem começou a medir coisas de forma quantitativa.
Não sabemos nem quem veio antes, se números cardinais (1, 2, 3) ou
ordinais (1º, 2º, 3º). Alguns antropólogos defendem que a contagem se
desenvolveu especificamente para lidar com necessidades simples do dia a
dia - o que indica que os cardinais apareceram antes. Outra corrente
sugere que os números podem ter sido inicialmente relacionados a rituais
que exigiam ordem de aparição. A primeira estrela a surgir no céu ou a
segunda colheita após a chuva, por exemplo.
O método de contagem
mais antigo é o do osso ou do pedaço de madeira entalhado. Os primeiros
testemunhos arqueológicos conhecidos dessa prática datam do período
aurignacense (35 mil a.C. a 20 mil a.C.). Outras evidências também
comprovam que o homem registrava quantidades com representações de
argila e nós em cordas. Um objeto de argila encontrado no Peru, por
exemplo, pode ter significado uma contagem de cabeças de gado.
As
primeiras noções de quantidade com que o homem começou a lidar foram as
mais próximas de sua realidade. Logo, 1 e 2 são os números mais
antigos. De 3 em diante, era tudo uma mesma quantidade disforme que
representava muita coisa. Não importava se era 50 ou 500. Não havia essa
distinção. Ou seja, um é pouco, dois é bom, três é demais. A famosa
expressão representa a antiga relação do homem com os números. Os
sumérios, em 3 mil a.C., usavam o termo es para representar 3 e ao mesmo
tempo "muitas coisas". Não havia definição para 4 em diante.
A própria noção de que um número
representa uma quantidade específica levou séculos para ser absorvida.
Dois são 2, não importa se são 2 ovos, 2 elefantes ou 2 ônibus. Mas, até
hoje, alguns idiomas contêm traços dessa antiga separação entre a
quantidade e o número
específico para representá-la. E isso é intrinsecamente ligado à
cultura e ao cotidiano de um povo. Em Fiji, arquipélago no Pacífico
pouco menor que Sergipe, cocos e barcos fazem tanto parte da cultura
local que existem palavras diferentes para a mesma quantidade deles. Por
exemplo, 10 cocos é koro e 10 barcos é bolo.
Calcular faz parte
do cotidiano do homem. A verdadeira revolução, portanto, está na forma
de fazer cálculos. Uma novidade que chegou ao Ocidente há menos de mil
anos. "Talvez por ser fruto de práticas coletivas, essa história não poderia ser atribuída de modo preciso a ninguém", explica Georges Ifrah, autor de A História dos Números - Uma Grande Invenção.
Até
então, havia diferentes sistemas numéricos, criados por diferentes
civilizações, como as mesopotâmicas, maia, egípcia, grega e chinesa.
Todos com uma coisa em comum: desordem. Esses sistemas tinham um nome ou
objeto diferente para cada número.
Ou seja, teoricamente, eram modelos com símbolos infinitos. E, por
razões práticas, nenhum método assim sobrevive por muito tempo. Essa
dificuldade de escrever números grandes também prejudicava a adição, a
subtração, a multiplicação e a divisão. Foi aí que, na Índia do século 5
a.C., surgiu a base decimal, ou seja, a noção de que números podem ser
arrumados hierarquicamente, usando-se apenas 10 símbolos. Por exemplo,
apenas com o símbolo 5 pode-se representar infinitos números: 55, 555,
5555 e assim por diante. Não era mais necessário um símbolo para cada número.
Como
definir o valor desses símbolos postos lado a lado? Depende da posição
em que cada um está, da direita para a esquerda: casa das unidades,
dezenas etc. Ideia simples e funcional, que eu, você e todo mundo sabe.
Mas que demorou 1,7 mil anos para se espalhar. "A Europa teve de esperar
Leonardo de Pisa para aprender a contar direito", diz o inglês Keith
Devlin, autor de The Man of Numbers: Fibonacci’s Arithmetic Revolution
("o homem dos números, a revolução aritmética de Fibonacci", inédito em
português).
Mas por que a base é decimal e não quinzenal? Na
verdade, houve outras bases. A base 20 já foi popular na Europa
Ocidental, por exemplo. Até hoje, em francês, 80 é quatre-vingts
("quatro vintes"). Alguns povos, como os sumérios, em 4000 a.C, optaram
por organizar seres e objetos em grupos de 60. "Esse sistema
sobrecarrega o cérebro, já que requer um símbolo para todos os números
de 1 a 60", diz o astrofísico Mario Lívio, autor de Deus É Matemático?
Mesmo assim, a forma suméria deixou um legado que perdura até hoje, na
divisão da hora em 60 minutos de 60 segundos cada um. Já se perguntou
por que depois de 4h59 não é 4h60, mas 5h? Culpe os sumérios. Mas foi a
base decimal que deu mais certo e conquistou o mundo. Muito
provavelmente por causa de um motivo trivial. Ela teria sido inspirada
nos 10 dedos da mão, e mão é a primeira coisa que o homem usou para
calcular. Por isso ela parece tão natural. Agrupamos números em 10, 100,
1 000 porque não poderia ser mais prático.
Leonardo e os árabes
Os
algarismos que usamos atualmente são uma herança indiana transmitida
pelos árabes. No século 7, o islamismo expandiu-se em todas as direções,
entrando em contato com diversas culturas, o que significou um avanço
científico tremendo. Eles estudaram e traduziram obras de filósofos e
matemáticos gregos e, ao conquistar a Índia, reconheceram a importância
do sistema numérico hindu, que já tinha mais de mil anos de uso. E
propagaram o novo conhecimento ao longo de seus domínios. O que não
incluía a maior parte do continente europeu.
Havia dois tipos de
matemáticos na Europa do século 12: os de escolas religiosas ou
universidades e os que exerciam atividades de comércio e negócios. É
neste último grupo que Leonardo de Pisa se inseria. Ele viveu por algum
tempo com seu pai, um funcionário de comércio e alfândega, em Bugia, na
atual Argélia, e viajou para países como Grécia, Egito e Síria, onde
teve a oportunidade de estudar e comparar diferentes métodos de
operações numéricas. Em contato com o sistema utilizado pelos mercadores
árabes, Leonardo aprendeu uma maneira mais eficiente para calcular. O
sistema desenvolvido na Índia era muito mais simples do que o romano.
"Estes são os 9 símbolos hindus: 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1. Com eles, mais o símbolo 0, que em árabe é chamado zéfiro, qualquer número
pode ser escrito." Com essas palavras introdutórias, Leonardo de Pisa
publicou, em 1202, o Liber Abbaci. A obra, traduzida como Livro do Cálculo,
apresentou à Europa as operações de somar, subtrair, multiplicar e
dividir, usando a novidade dos algarismos. Não foi o primeiro livro
escrito no continente para descrever o novo sistema numérico. Mas foi o
mais influente e acessível, o que fez toda a diferença.
Ao
facilitar os cálculos que faziam parte do cotidiano das pessoas,
Leonardo democratizou o conhecimento matemático. Agora, era muito mais
simples fazer contas, sem depender de um especialista em ábaco. Leonardo
teve o cuidado de explicar os conceitos com exemplos da vida cotidiana
comercial: preço de bens, cálculo
de lucros e as conversões entre as diferentes moedas. "As pessoas
comuns que queriam fazer negócios passaram a fazer contas sozinhas. E
isso foi graças à nova forma de calcular apresentada por Leonardo",
explica Devlin. "Naquela época, ainda sem imprensa, a divulgação era
boca a boca. Muitas cópias do livro, feitas a mão, foram armazenadas em
grandes mosteiros. Os interessados tiveram que lê-las lá, como obras de
referência", diz. "E, depois que Liber Abbaci saiu, centenas de pessoas
escreveram obras derivadas. Elas passaram a ter seus próprios livros
sobre aritmética, com aquilo que lhes interessava."
A técnica
popularizada por Leonardo ficou conhecida como numeração de
al-Khowarizmi, em homenagem ao matemático árabe Mohamed Ibn Musa
Alchwarizmi, que em 820 escreveu sobre a arte hindu de calcular. Com o
tempo, o nome mudou para algorismi, que em português virou "algarismo".
Entretanto,
os numerais indo-arábicos não foram aceitos prontamente pelos europeus e
chegaram a ser proibidos pela Igreja. Ela chegou a espalhar que, de tão
engenhoso, o cálculo
árabe era demoníaco. Além disso, os praticantes do ábaco estavam
preocupados com seu ganha-pão. "Não queriam ouvir falar desses métodos
que colocavam operações aritméticas ao alcance de todos", explica Ifrah.
Mas a essa altura já era um caminho sem volta. Os algarismos trouxeram
desenvolvimento à Europa medieval e tiveram importância na transição
para a Idade Moderna. Mesmo com todas essas vantagens, a campanha
contrária, somada ao costume arraigado nas pessoas comuns de persistir
usando o sistema numérico romano, atrasou por séculos a vitória
definitiva do algarismo. Durante esse período de transição, houve uma grande rivalidade entre os "abacistas" - aqueles que eram especialistas em cálculo com o ábaco - e os "algoritmistas" - os que privilegiavam o cálculo
por meio do novo sistema. Um embate que terminou somente no século 16,
com a vitória dos algarismos. Naquela época, eles já estavam bastante
estabelecidos e foram essenciais para as épicas viagens marítimas de
Cristóvão Colombo, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e Fernão de
Magalhães. É claro que houve grandes expedições nos mares antes. Vikings
e chineses, por exemplo, exploraram os oceanos Atlântico e Pacífico,
respectivamente. Mas o conhecimento dos algarismos indianos proporcionou
o desenvolvimento da astronomia e da navegação na Europa, o que
permitiu viagens muito mais bem organizadas e planejadas. Mesmo assim, o
ábaco resistia. O ensino do instrumento só foi abolido de uma vez por
todas nas escolas com a Revolução Francesa, em 1789.
Os
historiadores e os matemáticos que pesquisam e analisam o legado de
Leonardo de Pisa colocam a invenção do atual sistema de numeração
indo-arábico no mesmo nível de importância que a invenção da roda. É
graças a ela que a matemática e a engenharia puderam avançar. Graças a
ela a computação e a internet nasceram. Leonardo de Pisa conseguiu, com a
abordagem certa, convencer a Europa a fazer contas de maneira melhor.
Como definiu o escritor David Hutter, os algarismos são a coisa mais
próxima de uma linguagem humana universal.
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