A mente de algumas pessoas parece uma república lotada:
personalidades de todo tipo brigam por espaço ou, às vezes, convivem
numa boa. E até mesmo você pode fazer parte dessa bagunça
por Reinaldo José Lopes
link original http://super.abril.com.br/cotidiano/grande-familia-multipla-personalidade-446768.shtml
A britânica Sue (nome fictício) provavelmente deve estar de
saco cheio de abrir a garagem de manhã. Sempre há uma surpresa esperando
quando ela entra no carro: o rádio não está em sua estação preferida
ou, então, os retrovisores e os bancos estão em posições esdrúxulas. Um
belo dia, o seu carro popular havia sumido e, no lugar, estava um Jaguar
conversível vermelho. O pior é que quem faz essa bagunça toda é a
própria Sue. É? Bem, mais ou menos.
Sue sofre de DID, a sigla inglesa de distúrbio de identidade dissociativa. É o nome técnico do problema conhecido como múltipla personalidade. Alguns psiquiatras ainda contestam que mais de uma mente possa conviver dentro da mesma cabeça, mas os últimos anos têm trazido mais e mais evidências do contrário. O mais maluco é que, às vezes, a convivência entre os muitos “eus” dentro da cabeça pode ser experimentada conscientemente por todos eles e vivida de forma pacífica.
Nunca é demais lembrar que, até onde sabemos, esse problema pode representar a extrapolação de uma capacidade presente em todos que carregam um cérebro humano. Sob controle, talvez ele até mesmo seja essencial para manter o que costumamos chamar de sanidade.
Imagine, por exemplo, como seria se você não conseguisse se distanciar de si mesmo durante uma situação emocionalmente arrasadora, como a morte de um ente querido ou um acidente de carro do qual você saísse muito machucado. Ou, num contexto mais corriqueiro, pense em quantas vezes você trancou a porta de casa ou dirigiu de forma tão automática que, minutos depois, nem conseguia se lembrar de ter feito isso.
Por alguns minutos, pelo menos, sua mente teve a oportunidade de fugir de um corpo preso a determinadas situações tristes, chatas ou doloridas. Quem é que esteve no comando do seu corpo enquanto “você” deu uma escapada?
O fenômeno fica menos surpreendente se levarmos em conta, como explica o neurocientista Miguel Nicolelis, da Universidade Duke (EUA), que as várias partes do corpo são “mapeadas” no córtex. “Essas múltiplas áreas do cérebro contêm mapas, representações completas do nosso corpo”, conta ele. Tais mapas, porém, mudam mais que o da ex-Iugoslávia na década de 1990: alterações como mudança de peso ou, mais radicalmente, a perda de um membro, exigem que o cérebro “remapeie” o corpo ao qual pertence.
E se o remanejamento acontecer, por algum motivo, fora de hora? Talvez um fenômeno desse tipo esteja por trás da chamada paralisia histérica, na qual a pessoa jura ser incapaz de mexer um membro, embora fisicamente esteja tudo normal com ele. Um estudo feito por pesquisadores do Hospital Radcliffe, em Oxford, no Reino Unido, e publicado na revista científica Cognition, fez imagens do cérebro de pessoas com esse problema. O que eles viram é que a parte do cérebro que planeja os movimentos (batizada com o indigesto nome de córtex motor suplementar) não conseguia se comunicar com a que coloca as instruções em ação e faz (ou deveria fazer) o membro se mexer. Existem casos de pessoas tão convictas de que um de seus membros estava inutilizado que chegaram a convencer médicos a amputá-los.
Há relatos ainda mais malucos sobre a chamada “síndrome da mão estranha”, que parece saída diretamente do clássico de terror Uma Noite Alucinante, dos anos 80, onde uma mão descontrolada faz de tudo para matar o seu “dono”. Nessa síndrome, a mão do sujeito parece fazer coisas independentemente da vontade da pessoa – enquanto a mão “consciente” acaricia alguém, a “estranha” dá um tapa, só para citar o exemplo mais gritante.
Dá-se o nome de ilusão de Cotard (em homenagem ao neurologista francês Jules Cotard, que descreveu pela primeira vez o problema no século 19) ao que talvez seja o exemplo mais radical de cisão entre o senso de identidade pessoal e a experiência corporal. Quem é presa desse tipo de ilusão acredita piamente que está morto, e nenhum tipo de argumentação vai convencer tal pessoa do contrário. Em um caso descrito nos anos 90, um rapaz escocês sofreu um acidente de moto e passou uma temporada no hospital. Depois de receber alta, a mãe resolveu levá-lo para a África do Sul; ele passou a acreditar que estava no inferno (afinal, por que é que estava tão quente?).
Às vezes, no entanto, uma ilusão quase tão assustadora pode fazer a vítima sentir que, ao invés de não ter corpo nenhum, há outro corpo além do dela, sempre à espreita. Muita gente já teve essa mesma sensação esquisita de que há alguém atrás de si, apenas para se voltar e descobrir que não há nada lá. A culpada, indica um estudo recente na revista científica britânica Nature, pode ser a região do cérebro conhecida como junção temporoparietal, já relacionada antes a outros fenômenos “fantasmagóricos”, como as chamadas experiências de quase-morte.
No estudo, Olaf Blanke e seus colegas da Escola Politécnica Federal de Lausanne, na Suíça, estimularam eletricamente a junção temporo-parietal no cérebro de uma moça de 22 anos que tinha problemas com epilepsia. “Durante os dois segundos de estimulação, ela teve a sensação de que havia outra pessoa na sala e que essa pessoa sempre se postava logo atrás dela”, conta Blanke. “A experiência era tão convincente que ela sentia necessidade de se virar o tempo todo para ter certeza absoluta de que não havia ninguém lá junto com ela.”
“Ele está atrás de mim, quase colado no meu corpo, mas não consigo tocá-lo”, dizia a paciente. Quando pediram que a jovem abraçasse os próprios joelhos durante a estimulação, ela relatou que o “estranho” a estava pegando nos braços – uma sensação definitivamente desagradável. “Acreditamos que esse fenômeno acontece porque há uma perturbação na chamada distinção eu-outro”, afirma Blanke. Trocando em miúdos: pelo menos momentaneamente, o cérebro dela teria perdido a capacidade de “amarrar” as sensações numa única identidade, deixando a paciente totalmente confusa.
Um levantamento com uma centena de pacientes com DID sugere que o número médio de alter egos é, sabe-se lá o porquê, 13. Em termos médicos, 100 pessoas é um número baixo demais para ser confiável estatisticamente, mas dá uma idéia do tamanho da confusão que essas pessoas enfrentam. É preciso, no entanto, distinguir entre dois casos: as personalidades que nunca se cruzam e as que têm algum “contato” (por mais estranha que seja a palavra) entre si.
Nesse segundo caso, as várias identidades chegam a formar o que em inglês se denomina household (termo que significa algo como “família” ou “grupo de pessoas que vivem na mesma casa”). O americano John, por exemplo, usa esse nome para designar coletivamente a household formada por John, Jay, Decca, Mac e Sanji. Apesar de terem uma briguinha ou outra, no geral eles se dão bem e respeitam as tendências e gostos de cada um. “Quando um de nós está no comando do corpo, o resto fica lá, na parte de trás da cena. Não conseguimos fazer nada, mas vemos o que está acontecendo, sabemos o que a identidade que está ‘lá fora’ está pensando, e acompanhamos tudo por meio dos olhos dela”, declarou John à revista New Scientist. Alguns neurocientistas apelidaram esse fenômeno de “co-consciência” – uma forma de consciência compartilhada entre as várias identidades.
As bases neurológicas de um fenômeno tão maluco quanto esse ainda permanecem profundamente misteriosas, mas recentemente os cientistas obtiveram pistas sobre o que acontece no cérebro de pessoas com uma forma distinta de DID. Seria mais ou menos o tipo que afeta Sue: as várias personalidades não se falam, e muitas vezes só sabem da existência das outras por evidências indiretas (como o rádio do carro inexplicavelmente sintonizado naquela emissora que só toca mambo e conga). Os indícios vêm do hipocampo, a estrutura cerebral responsável pelo funcionamento de boa parte da memória.
Falando de modo mais especiífico, os pesquisadores consideram que o hipocampo registra a chamada memória autobiográfica – grosso modo, aquela que diz ao “você hoje” que ele é igual ao “você ontem” e ao “você amanhã”, formando uma cadeia contínua de lembranças de acontecimentos. Uma dupla de pesquisadores nos EUA, o neurobiólogo Guochuan Tsai, do Hospital McLean, e o psiquiatra Don Condie, do Hospital Geral de Massachusetts, resolveram investigar o que acontecia no hipocampo de uma mulher com DID. Aparentemente, ela tinha a capacidade de mudar de alter ego mais ou menos por vontade própria. Estudando o caso, Tsai e Condie usaram um aparelho de Ressonância Magnética Funcional (RMF), capaz de detectar mudanças na atividade das estruturas cerebrais quase em tempo real. O que eles viram é que, quando a identidade “principal” da moça saía de cena, havia uma diminuição significativa na atividade do hipocampo. Ele só voltava a funcionar à toda potência quando essa identidade primária também reaparecia. Talvez isso queira dizer que a memória autobiográfica dos vários alter egos é mais limitada e menos fixa que a da identidade principal. Isso parece casar com outro fato curioso: é comum que os alter egos sejam, em certo sentido, pessoas menos completas que a personalidade número 1. Se fossem personagens de livros, filmes ou novelas, eles seriam mais unidimensionais, ou seja, pouco complexos: tendem a ser inocentes ou malandros, dóceis ou violentos, mas nunca apresentando as duas características ao mesmo tempo.
Mais uma vez, os dados sólidos a esse respeito ainda são muito poucos. Se excluirmos a quantidade (hoje decrescente) de pesquisadores que ainda duvidam da própria existência de múltiplas personalidades, há os especialistas que atribuem o problema a danos cerebrais ligados a acidentes – uma causa já bem estabelecida de problemas mentais – ou a alguma vulnerabilidade inata, um problema de fiação cerebral que já veio “de fábrica”, digamos assim.
Outros, no entanto, já chegaram a postular que alguns pacientes com DID sofreram alguma forma de abuso quando eram crianças. Há até alguma evidência estatística de que a proporção de pessoas que sofreram maus-tratos quando pequenas é maior entre os afetados pelo distúrbio do que entre o resto da população. O raciocínio dos que tentam ligar uma coisa à outra se baseia no chamado instinto de freeze (da palavra inglesa para “congelar”), encontrado em filhotes das mais variadas espécies de animais, e também entre adultos indefesos. De forma muito simplificada, dá para dizer que esse instinto aflora quando um indivíduo percebe que ele não tem a menor chance de resistir fisicamente à agressão, muito menos de fugir. Do ponto de vista da sobrevivência, o mais vantajoso acaba sendo ficar “congelado” de medo até que a agressão passe. Essa defesa comportamental do freeze pode ser acompanhada, em criaturas com vida mental tão complexa quanto os seres humanos, por uma fuga interna, na qual é mais vantajoso se refugiar dentro da própria cabeça, até que a ameaça física vá embora.
Agora, imagine o efeito de situações repetidas desse tipo sobre o “eu” em formação de uma criança. Não é imaginação demais supor que a capacidade do cérebro infantil de construir uma identidade externa única poderia, a longo prazo, ficar prejudicada por essas tentativas desesperadas de escapar da realidade. É um cenário intrigante, embora ainda falte muita pesquisa e muito estudo para determinar com certeza se a raiz do problema é realmente essa.
Seja lá quais forem as causas do distúrbio, qual a chance de topar com alguém que sofre dele ao dobrar a esquina? Para variar, não existem certezas sobre o assunto. Hoje, o número de casos com diagnóstico médico claro no mundo todo não passa de 6 mil. No entanto, uma pesquisa feita nos anos 90 sugere que até 3% dos americanos e 0,5% dos europeus poderia ter o distúrbio. Segundo especialistas, essa diferença entre os continentes seria uma anomalia estatística devido ao pequeno número de pessoas pesquisadas; essa porcentagem provavelmente seria igual com uma amostragem maior. Os números poderiam ser ainda mais impressionantes se outras formas de distúrbio dissociativo – os que envolvem a relação mente-corpo, ou versões mais leves de problemas de identidade e personalidade – fossem levadas em conta.
Somos todos múltiplos?
Ainda há um número enorme de pontos de interrogação a respeito desses problemas da mente.
Uma coisa, no entanto, vem ficando clara: apesar de às vezes
representar uma barreira enorme para pessoas que realmente sofrem de
DID, esse tipo de fenômeno tem um efeito muito maior sofre a vida de
todos nós do que gostaríamos de admitir.
Conforme já vimos, as múltiplas personalidades podem ser um desarranjo em um mecanismo inato a todos os seres humanos (eu e você inclusos) e desenvolvido ao longo de milhões de anos para proteger o cérebro de grandes choques psicológicos.
Pense nas diferenças de temperamento e gostos que existem entre os vários “eus” que você já teve, e em como os outros e até mesmo você se surpreendem com as suas atitudes, de vez em quando. Aí é que vai ficar claro como esse negócio de identidade, às vezes, é mais múltiplo do que a gente gostaria.
“Fazemos companhia uns aos outros. Não queremos ser ‘integrados’ – a vida em grupo nos torna mais fortes ... e nunca estamos sozinhos.”
John*
“Dependendo de qual das minhas personalidades dirigiu o carro, o rádio está em outra estação e os espelhos foram ajustados.”
Sue*
“Eu me via caminhando e até sorrindo para um vizinho, mas eu não estava lá – estava em algum outro lugar. A pessoa que estava caminhando era como se fosse um fantoche – vazia por dentro.”
Jackie*
“É comum eu encontrar coisas na geladeira que eu não comprei. Todas as minhas plantas estão mortas porque ninguém mais as rega.”
Nathan*
“É verdade que muitos múltiplos experimentam dificuldades emocionais terríveis ao lidar com a sua ‘família’, como nós múltiplos chamamos a nós mesmos. Entretanto, algumas dessas famílias funcionam em harmonia.”
Linda*
*Os nomes são todos fictícios.
O arquiteto dessa obra é a evolução. O órgão que todos carregamos em cima do pescoço guarda inúmeras relíquias desde que começou a se formar no ancestral comum dos animais vertebrados. Grosso modo, os neurocientistas enxergam uma estrutura em 3 partes na nossa cabeça: um pedaço de réptil, outro de mamífero e um terceiro de gente.
“O cérebro de réptil come, respira e dorme; o de mamífero forma hierarquias de dominância e cuida dos bebês; e o de gente escreve livros sobre tudo isso”, brinca Temple Grandin, especialista da Universidade do Estado do Colorado, nos EUA. Há uma divisão de trabalho anatômica correspondente a esse sistema. Costuma-se comparar o cérebro reptiliano ao tronco cerebral e ao cerebelo, na base do órgão, que lidam com mecanismos tão básicos quanto movimento, digestão, reprodução e respiração. O cérebro mamífero equivale ao sistema límbico, formado pela amígdala (não confundir com a da garganta) e pelo hipocampo, responsáveis por lidar com emoções e memórias, respectivamente. Fechando o desfile, o cérebro “humano”, formado pelo chamado neocórtex, a camada mais externa.
Do ponto de vista da seleção natural, essa estrutura faz sentido: em vez de mexer em time que está ganhando, dá bem menos trabalho usar o que já funciona e simplesmente adicionar as novidades por cima. O problema é que as conexões corretas entre as diferentes partes do córtex e as delas com os outros dois “cérebros” são cruciais para que tudo funcione bem. Mas, como há independência entre os andares do puxadinho, as conexões podem dar errado sem que as funções da sobrevivência sejam prejudicadas, abrindo espaço para a DID.
O detalhe é que Donnie estava preso dentro do corpo de John – ele sofre de DID. Ao que tudo indica, é um daqueles casos em que as personalidades alternativas estão cientes da existência uma da outra, mas aqui elas não parecem ter contato direto entre si.
Não se sabe até que ponto o fenômeno é comum – afinal, se há dúvidas sobre a fração de pessoas no mundo com DID, imagine quando se trata de uma versão específica do distúrbio e da quantidade de doentes que cometeram assassinato.
No entanto, obviamente ressurgem velhas questões sobre responsabilidade pessoal: dá para prender alguém nessas condições? Por outro lado, um assassino mais calculista e com vocação para ator poderia fingir ter o distúrbio para escapar das grades. Em pelo menos um caso desses nos EUA, o feitiço virou contra o feiticeiro: um assassino supostamente dono de uma dupla personalidade de repente arrumou uma terceira quando seu psiquiatra mencionou que o normal era que pessoas com DID tivessem mais de duas personalidades...
Uma Menina Estranha, Temple Grandin e Margaret Scariano, Companhia das Letras, Brasil, 1999
Tipos de Mentes, Daniel Dennett, Rocco, Brasil, 1997
Sue sofre de DID, a sigla inglesa de distúrbio de identidade dissociativa. É o nome técnico do problema conhecido como múltipla personalidade. Alguns psiquiatras ainda contestam que mais de uma mente possa conviver dentro da mesma cabeça, mas os últimos anos têm trazido mais e mais evidências do contrário. O mais maluco é que, às vezes, a convivência entre os muitos “eus” dentro da cabeça pode ser experimentada conscientemente por todos eles e vivida de forma pacífica.
Nunca é demais lembrar que, até onde sabemos, esse problema pode representar a extrapolação de uma capacidade presente em todos que carregam um cérebro humano. Sob controle, talvez ele até mesmo seja essencial para manter o que costumamos chamar de sanidade.
Imagine, por exemplo, como seria se você não conseguisse se distanciar de si mesmo durante uma situação emocionalmente arrasadora, como a morte de um ente querido ou um acidente de carro do qual você saísse muito machucado. Ou, num contexto mais corriqueiro, pense em quantas vezes você trancou a porta de casa ou dirigiu de forma tão automática que, minutos depois, nem conseguia se lembrar de ter feito isso.
Por alguns minutos, pelo menos, sua mente teve a oportunidade de fugir de um corpo preso a determinadas situações tristes, chatas ou doloridas. Quem é que esteve no comando do seu corpo enquanto “você” deu uma escapada?
Mão estranha
Nem é preciso chegar às formas “clássicas” de DID para perceber o
estrago que os desarranjos da arquitetura cerebral podem causar. Mesmo
sem que haja a “coexistência” de diversas mentes, a própria relação de
identidade entre corpo e cabeça pode ser quebrada.O fenômeno fica menos surpreendente se levarmos em conta, como explica o neurocientista Miguel Nicolelis, da Universidade Duke (EUA), que as várias partes do corpo são “mapeadas” no córtex. “Essas múltiplas áreas do cérebro contêm mapas, representações completas do nosso corpo”, conta ele. Tais mapas, porém, mudam mais que o da ex-Iugoslávia na década de 1990: alterações como mudança de peso ou, mais radicalmente, a perda de um membro, exigem que o cérebro “remapeie” o corpo ao qual pertence.
E se o remanejamento acontecer, por algum motivo, fora de hora? Talvez um fenômeno desse tipo esteja por trás da chamada paralisia histérica, na qual a pessoa jura ser incapaz de mexer um membro, embora fisicamente esteja tudo normal com ele. Um estudo feito por pesquisadores do Hospital Radcliffe, em Oxford, no Reino Unido, e publicado na revista científica Cognition, fez imagens do cérebro de pessoas com esse problema. O que eles viram é que a parte do cérebro que planeja os movimentos (batizada com o indigesto nome de córtex motor suplementar) não conseguia se comunicar com a que coloca as instruções em ação e faz (ou deveria fazer) o membro se mexer. Existem casos de pessoas tão convictas de que um de seus membros estava inutilizado que chegaram a convencer médicos a amputá-los.
Há relatos ainda mais malucos sobre a chamada “síndrome da mão estranha”, que parece saída diretamente do clássico de terror Uma Noite Alucinante, dos anos 80, onde uma mão descontrolada faz de tudo para matar o seu “dono”. Nessa síndrome, a mão do sujeito parece fazer coisas independentemente da vontade da pessoa – enquanto a mão “consciente” acaricia alguém, a “estranha” dá um tapa, só para citar o exemplo mais gritante.
Dá-se o nome de ilusão de Cotard (em homenagem ao neurologista francês Jules Cotard, que descreveu pela primeira vez o problema no século 19) ao que talvez seja o exemplo mais radical de cisão entre o senso de identidade pessoal e a experiência corporal. Quem é presa desse tipo de ilusão acredita piamente que está morto, e nenhum tipo de argumentação vai convencer tal pessoa do contrário. Em um caso descrito nos anos 90, um rapaz escocês sofreu um acidente de moto e passou uma temporada no hospital. Depois de receber alta, a mãe resolveu levá-lo para a África do Sul; ele passou a acreditar que estava no inferno (afinal, por que é que estava tão quente?).
Às vezes, no entanto, uma ilusão quase tão assustadora pode fazer a vítima sentir que, ao invés de não ter corpo nenhum, há outro corpo além do dela, sempre à espreita. Muita gente já teve essa mesma sensação esquisita de que há alguém atrás de si, apenas para se voltar e descobrir que não há nada lá. A culpada, indica um estudo recente na revista científica britânica Nature, pode ser a região do cérebro conhecida como junção temporoparietal, já relacionada antes a outros fenômenos “fantasmagóricos”, como as chamadas experiências de quase-morte.
No estudo, Olaf Blanke e seus colegas da Escola Politécnica Federal de Lausanne, na Suíça, estimularam eletricamente a junção temporo-parietal no cérebro de uma moça de 22 anos que tinha problemas com epilepsia. “Durante os dois segundos de estimulação, ela teve a sensação de que havia outra pessoa na sala e que essa pessoa sempre se postava logo atrás dela”, conta Blanke. “A experiência era tão convincente que ela sentia necessidade de se virar o tempo todo para ter certeza absoluta de que não havia ninguém lá junto com ela.”
“Ele está atrás de mim, quase colado no meu corpo, mas não consigo tocá-lo”, dizia a paciente. Quando pediram que a jovem abraçasse os próprios joelhos durante a estimulação, ela relatou que o “estranho” a estava pegando nos braços – uma sensação definitivamente desagradável. “Acreditamos que esse fenômeno acontece porque há uma perturbação na chamada distinção eu-outro”, afirma Blanke. Trocando em miúdos: pelo menos momentaneamente, o cérebro dela teria perdido a capacidade de “amarrar” as sensações numa única identidade, deixando a paciente totalmente confusa.
Meu nome é Legião
Quando esses estranhos fenômenos de dissociação ou desconexão se deslocam da relação entre mente e corpo para o interior da própria mente,
está pronto o cenário para a DID. Alguns dados preliminares sugerem que
as pessoas nessa condição, ao contrário do velho lugar-comum da “dupla personalidade”,
não economizam no número de alter egos. Aliás, elas parecem estar mais
para um homem que, segundo os Evangelhos, estava possuído por um monte
de demônios e foi curado por Jesus: quando Cristo perguntou o nome da
entidade que atormentava o sujeito, a resposta foi: “Meu nome é Legião,
porque somos muitos”.Um levantamento com uma centena de pacientes com DID sugere que o número médio de alter egos é, sabe-se lá o porquê, 13. Em termos médicos, 100 pessoas é um número baixo demais para ser confiável estatisticamente, mas dá uma idéia do tamanho da confusão que essas pessoas enfrentam. É preciso, no entanto, distinguir entre dois casos: as personalidades que nunca se cruzam e as que têm algum “contato” (por mais estranha que seja a palavra) entre si.
Nesse segundo caso, as várias identidades chegam a formar o que em inglês se denomina household (termo que significa algo como “família” ou “grupo de pessoas que vivem na mesma casa”). O americano John, por exemplo, usa esse nome para designar coletivamente a household formada por John, Jay, Decca, Mac e Sanji. Apesar de terem uma briguinha ou outra, no geral eles se dão bem e respeitam as tendências e gostos de cada um. “Quando um de nós está no comando do corpo, o resto fica lá, na parte de trás da cena. Não conseguimos fazer nada, mas vemos o que está acontecendo, sabemos o que a identidade que está ‘lá fora’ está pensando, e acompanhamos tudo por meio dos olhos dela”, declarou John à revista New Scientist. Alguns neurocientistas apelidaram esse fenômeno de “co-consciência” – uma forma de consciência compartilhada entre as várias identidades.
As bases neurológicas de um fenômeno tão maluco quanto esse ainda permanecem profundamente misteriosas, mas recentemente os cientistas obtiveram pistas sobre o que acontece no cérebro de pessoas com uma forma distinta de DID. Seria mais ou menos o tipo que afeta Sue: as várias personalidades não se falam, e muitas vezes só sabem da existência das outras por evidências indiretas (como o rádio do carro inexplicavelmente sintonizado naquela emissora que só toca mambo e conga). Os indícios vêm do hipocampo, a estrutura cerebral responsável pelo funcionamento de boa parte da memória.
Falando de modo mais especiífico, os pesquisadores consideram que o hipocampo registra a chamada memória autobiográfica – grosso modo, aquela que diz ao “você hoje” que ele é igual ao “você ontem” e ao “você amanhã”, formando uma cadeia contínua de lembranças de acontecimentos. Uma dupla de pesquisadores nos EUA, o neurobiólogo Guochuan Tsai, do Hospital McLean, e o psiquiatra Don Condie, do Hospital Geral de Massachusetts, resolveram investigar o que acontecia no hipocampo de uma mulher com DID. Aparentemente, ela tinha a capacidade de mudar de alter ego mais ou menos por vontade própria. Estudando o caso, Tsai e Condie usaram um aparelho de Ressonância Magnética Funcional (RMF), capaz de detectar mudanças na atividade das estruturas cerebrais quase em tempo real. O que eles viram é que, quando a identidade “principal” da moça saía de cena, havia uma diminuição significativa na atividade do hipocampo. Ele só voltava a funcionar à toda potência quando essa identidade primária também reaparecia. Talvez isso queira dizer que a memória autobiográfica dos vários alter egos é mais limitada e menos fixa que a da identidade principal. Isso parece casar com outro fato curioso: é comum que os alter egos sejam, em certo sentido, pessoas menos completas que a personalidade número 1. Se fossem personagens de livros, filmes ou novelas, eles seriam mais unidimensionais, ou seja, pouco complexos: tendem a ser inocentes ou malandros, dóceis ou violentos, mas nunca apresentando as duas características ao mesmo tempo.
Congelado de medo
Seja como for, a associação do fenômeno com o hipocampo sugere um
distúrbio no sistema límbico, o qual também é essencial para a
capacidade de lidar com as próprias emoções. Isso nos leva à mais
complicada das questões: que causa poderia estar por trás de distúrbios
aparentemente tão bizarros?Mais uma vez, os dados sólidos a esse respeito ainda são muito poucos. Se excluirmos a quantidade (hoje decrescente) de pesquisadores que ainda duvidam da própria existência de múltiplas personalidades, há os especialistas que atribuem o problema a danos cerebrais ligados a acidentes – uma causa já bem estabelecida de problemas mentais – ou a alguma vulnerabilidade inata, um problema de fiação cerebral que já veio “de fábrica”, digamos assim.
Outros, no entanto, já chegaram a postular que alguns pacientes com DID sofreram alguma forma de abuso quando eram crianças. Há até alguma evidência estatística de que a proporção de pessoas que sofreram maus-tratos quando pequenas é maior entre os afetados pelo distúrbio do que entre o resto da população. O raciocínio dos que tentam ligar uma coisa à outra se baseia no chamado instinto de freeze (da palavra inglesa para “congelar”), encontrado em filhotes das mais variadas espécies de animais, e também entre adultos indefesos. De forma muito simplificada, dá para dizer que esse instinto aflora quando um indivíduo percebe que ele não tem a menor chance de resistir fisicamente à agressão, muito menos de fugir. Do ponto de vista da sobrevivência, o mais vantajoso acaba sendo ficar “congelado” de medo até que a agressão passe. Essa defesa comportamental do freeze pode ser acompanhada, em criaturas com vida mental tão complexa quanto os seres humanos, por uma fuga interna, na qual é mais vantajoso se refugiar dentro da própria cabeça, até que a ameaça física vá embora.
Agora, imagine o efeito de situações repetidas desse tipo sobre o “eu” em formação de uma criança. Não é imaginação demais supor que a capacidade do cérebro infantil de construir uma identidade externa única poderia, a longo prazo, ficar prejudicada por essas tentativas desesperadas de escapar da realidade. É um cenário intrigante, embora ainda falte muita pesquisa e muito estudo para determinar com certeza se a raiz do problema é realmente essa.
Seja lá quais forem as causas do distúrbio, qual a chance de topar com alguém que sofre dele ao dobrar a esquina? Para variar, não existem certezas sobre o assunto. Hoje, o número de casos com diagnóstico médico claro no mundo todo não passa de 6 mil. No entanto, uma pesquisa feita nos anos 90 sugere que até 3% dos americanos e 0,5% dos europeus poderia ter o distúrbio. Segundo especialistas, essa diferença entre os continentes seria uma anomalia estatística devido ao pequeno número de pessoas pesquisadas; essa porcentagem provavelmente seria igual com uma amostragem maior. Os números poderiam ser ainda mais impressionantes se outras formas de distúrbio dissociativo – os que envolvem a relação mente-corpo, ou versões mais leves de problemas de identidade e personalidade – fossem levadas em conta.
Somos todos múltiplos?
Conforme já vimos, as múltiplas personalidades podem ser um desarranjo em um mecanismo inato a todos os seres humanos (eu e você inclusos) e desenvolvido ao longo de milhões de anos para proteger o cérebro de grandes choques psicológicos.
Pense nas diferenças de temperamento e gostos que existem entre os vários “eus” que você já teve, e em como os outros e até mesmo você se surpreendem com as suas atitudes, de vez em quando. Aí é que vai ficar claro como esse negócio de identidade, às vezes, é mais múltiplo do que a gente gostaria.
“Fazemos companhia uns aos outros. Não queremos ser ‘integrados’ – a vida em grupo nos torna mais fortes ... e nunca estamos sozinhos.”
John*
“Dependendo de qual das minhas personalidades dirigiu o carro, o rádio está em outra estação e os espelhos foram ajustados.”
Sue*
“Eu me via caminhando e até sorrindo para um vizinho, mas eu não estava lá – estava em algum outro lugar. A pessoa que estava caminhando era como se fosse um fantoche – vazia por dentro.”
Jackie*
“É comum eu encontrar coisas na geladeira que eu não comprei. Todas as minhas plantas estão mortas porque ninguém mais as rega.”
Nathan*
“É verdade que muitos múltiplos experimentam dificuldades emocionais terríveis ao lidar com a sua ‘família’, como nós múltiplos chamamos a nós mesmos. Entretanto, algumas dessas famílias funcionam em harmonia.”
Linda*
*Os nomes são todos fictícios.
Três em um
As novas pesquisas dão indicações intrigantes do que pode estar errado com quem sofre de DID. Cá entre nós, nem é de admirar tanto que isso aconteça: o tal cérebro pode funcionar um bocado bem, mas seu design, no fundo, não é lá essas coisas. É isso mesmo: o cérebro humano, o equipamento mais sofisticado do Universo conhecido, foi montado de forma bastante capenga, com um monte de peças usadas – algumas em atividade há uns 300 milhões de anos. Em resumo, um verdadeiro puxadinho, que começou como térreo e recebeu andar sobre andar por cima dele, sem preocupação em reformar as fundações .O arquiteto dessa obra é a evolução. O órgão que todos carregamos em cima do pescoço guarda inúmeras relíquias desde que começou a se formar no ancestral comum dos animais vertebrados. Grosso modo, os neurocientistas enxergam uma estrutura em 3 partes na nossa cabeça: um pedaço de réptil, outro de mamífero e um terceiro de gente.
“O cérebro de réptil come, respira e dorme; o de mamífero forma hierarquias de dominância e cuida dos bebês; e o de gente escreve livros sobre tudo isso”, brinca Temple Grandin, especialista da Universidade do Estado do Colorado, nos EUA. Há uma divisão de trabalho anatômica correspondente a esse sistema. Costuma-se comparar o cérebro reptiliano ao tronco cerebral e ao cerebelo, na base do órgão, que lidam com mecanismos tão básicos quanto movimento, digestão, reprodução e respiração. O cérebro mamífero equivale ao sistema límbico, formado pela amígdala (não confundir com a da garganta) e pelo hipocampo, responsáveis por lidar com emoções e memórias, respectivamente. Fechando o desfile, o cérebro “humano”, formado pelo chamado neocórtex, a camada mais externa.
Do ponto de vista da seleção natural, essa estrutura faz sentido: em vez de mexer em time que está ganhando, dá bem menos trabalho usar o que já funciona e simplesmente adicionar as novidades por cima. O problema é que as conexões corretas entre as diferentes partes do córtex e as delas com os outros dois “cérebros” são cruciais para que tudo funcione bem. Mas, como há independência entre os andares do puxadinho, as conexões podem dar errado sem que as funções da sobrevivência sejam prejudicadas, abrindo espaço para a DID.
As muitas faces de um crime
“Tudo parecia desconexo e confuso. Eu queria sair, mas estava preso ali dentro”, relata o americano Donnie (nome fictício) a respeito da experiência de ser testemunha de um assassinato sem poder fazer nada para impedir. Donnie conta que se sentiu indefeso como uma criança e incapaz até de pensar enquanto via um estudante universitário chamado John Woods matar duas mulheres.O detalhe é que Donnie estava preso dentro do corpo de John – ele sofre de DID. Ao que tudo indica, é um daqueles casos em que as personalidades alternativas estão cientes da existência uma da outra, mas aqui elas não parecem ter contato direto entre si.
Não se sabe até que ponto o fenômeno é comum – afinal, se há dúvidas sobre a fração de pessoas no mundo com DID, imagine quando se trata de uma versão específica do distúrbio e da quantidade de doentes que cometeram assassinato.
No entanto, obviamente ressurgem velhas questões sobre responsabilidade pessoal: dá para prender alguém nessas condições? Por outro lado, um assassino mais calculista e com vocação para ator poderia fingir ter o distúrbio para escapar das grades. Em pelo menos um caso desses nos EUA, o feitiço virou contra o feiticeiro: um assassino supostamente dono de uma dupla personalidade de repente arrumou uma terceira quando seu psiquiatra mencionou que o normal era que pessoas com DID tivessem mais de duas personalidades...
Vale a pena ler
Consciousness, Rita Carter, Weidenfeld & Nicolson/University of California Press, EUA, 2002Uma Menina Estranha, Temple Grandin e Margaret Scariano, Companhia das Letras, Brasil, 1999
Tipos de Mentes, Daniel Dennett, Rocco, Brasil, 1997
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