segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Ira - (Contos Sistinas)



[Do lat. ira.] S. f. 1. Cólera, raiva, indignação. 2. Desejo de vingança. - (escrito em 07/09/02) link original http://sistinas.com.br/sete-pecados-capitais.html


Stevens era da cidade grande. Quando chegou àquela cidadezinha, não gostou muito da vida à moda caipira. Já tinha mudado de idéia, e voltado atrás em sua decisão. Voltaria para sua cidade, depois de apenas três meses, pois a vida no interior era muito pacata.
Ou pelo menos era, até aquele anoitecer.
Ele se espremia na pequena janela do quarto, quando viu as tochas ao longe. Muitas. Ouviu também o burburinho das pessoas, conversas ríspidas, gritos indignados e muita raiva aparente. Mesmo à distância, era palpável o sentimento da estranha procissão.
Foi quando a viu. Ela passou na sua frente, correndo. Era loura, tinha grandes olhos azuis, chorosos, arregalados de medo. Vestia um apertado short jeans surrado, e uma camiseta branca. Percebeu o desespero no rosto dela.
-Me ajude!! Eles são loucos, e querem me matar!!! Por favor, me ajude!
Ele instintivamente abriu a porta, e viu que os camponeses estavam armados com paus e ancinhos. Lanças improvisadas, que eles balançavam ameaçadoramente. Estavam próximos dela, quando Stevens abriu a porta de seu casebre, para acolher a estranha menina. Sim, uma menina. Algo em torno dos dezessete. Olhando mais de perto, a inocência e a pouca idade estampada no rosto só perdiam para o medo.
-Não acolha essa bruxa, forasteiro! Ela é maligna! - gritou um velho, provavelmente o líder da procissão, lá fora.
Stevens ia argumentar, quando jogaram pedras na porta. "Ela já o colocou sobre influência do demo! Devem morrer os dois!!" - gritou alguém.
-O que eles querem de você? - perguntou, segurando o rosto angelical dela.
-Eu não sei. São ignorantes. Eles me acusam de bruxaria, e por isso querem me matar. Me ajude forasteiro!!!
-Bruxa? Ei, ei... que você anda fazendo de errado?
A menina não respondeu. Apenas soluçava mais, e mais, e tremia a cada pedrada que batia na porta do casebre de Stevens, o forasteiro anti-social do lugar.
-Queimaremos a bruxa, e o forasteiro também!! - quando o velho ordenou, todo mundo gritou junto, e Stevens percebeu que até o delegado estava ali.
O forasteiro tinha um revólver. E seis balas. Se atirasse para cima, dispersaria aqueles loucos. E amanhã iria embora daquela cidadezinha esquecida por Deus. Decidido, tirou a arma do armário, e carregou. A menina sentou-se num canto e segurava os cabelos. Ainda tremia, olhos arregalados, mas agora já não olhava mais para a porta, e sim para o céu lá fora. A noite estava bem próxima, e ela tremia, como se o manto noturno trouxesse algo maligno...
Stevens abriu a porta, disposto a conversar. Mas a turba estava enfurecida. Gritavam contra ele, que escondia a arma nas costas. Levantou o braço, pedindo a palavra.
-Parem! O que essa linda criança fez de errado?? Qual o crime dela??
-Nossos assuntos nós mesmos resolvemos, almofadinha de merda! - gritou o velho. Estava exaltado, e com isso motivava também os outros homens. - Queremos a garota!! Ela é uma bruxa!! E queremos você fora de nossa cidade!!
Stevens ia começar a falar, quando acertaram uma pedrada bem no meio da testa dele. Cambaleou, confuso, com a força do golpe. Quando viu a turba avançar, não teve dúvidas: sacou enfim a arma, e atirou. A fúria tomou o lugar da razão, e ele abateu três homens com tiros. A multidão dispersou, e correu, medrosa. Stevens tinha três balas, caso ainda fosse preciso. Mas sinceramente achava que não. Os camponeses correram assustados com os tiros, e pelo jeito estavam desprevenidos contra armas de fogo.
Aí aconteceu o mais estranho da noite. O manto negro escondeu o entardecer, e Stevens voltou para dentro do casebre. Por um instante, lhe pareceu que os camponeses furiosos fugiram da própria noite, pois estavam em maior número e podiam matá-lo com facilidade. Deixou de pensar nisso quando viu a menina, sentada, no canto, de cabeça baixa, entre as próprias pernas. Os longos cabelos louros cobriam tudo, menos a beleza. O forasteiro imaginou logo uma bela noite de sexo, como agradecimento.
"Oras, eu salvei a vida dela da fúria irracional deles.. E salvei minha pele também." - ele pensou, cinicamente, sorrindo.
Ainda com a arma em punho, se aproximou da garota, que não soluçava mais. Chiava. Coisa estranha, sobrenatural até. Ele se assustou, algo estava errado, mas mesmo assim não estava preparado para o que viria a seguir: ela se levantou, mas era algo maligno. Tinha longos caninos, e olhos amarelados, estranhos. Stevens demorou a reagir, quando escutou:
-Eu não tenho vida para ser salva...
Stevens recuou um passo.
-A fúria deles não é irracional. Mesmo esses matutos são sábios com as lendas... - ela continuou, e Stevens percebeu que tinha lido seu último pensamento.
-Ninguém irá te salvar da minha fome. Você não deveria ter me deixado adentrar sua casa, um dogma de minha raça... Agora você morre. - ela sentenciou.
O forasteiro segurou a súbita vontade de mijar nas calças que sentiu, e deu um tiro no meio da testa dela. Era mesmo um cara de muito sangue-frio.
Mas a garota apenas jogou a cabeça para trás, com o choque do tiro, recuperando-se rápido demais. Stevens riu nervosamente... "Morre porra!" e atirou de novo, agora no meio dos generosos seios da criatura.
Quando ela continuou andando após os dois tiros, ele enfim entendeu os camponeses, e o medo deles do anoitecer. E também toda a Ira com que a seguiam durante o dia. Mas agora, sabia que já estava morto. Ergueu o revólver, olhando para a última bala do tambor.
-Tenho a noite toda para brincar com sua dor, por você ter atirado duas vezes. - disse a criatura, avançando lentamente.
Stevens então apontou a arma para a própria cabeça, rezando para dar tempo...

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