terça-feira, 27 de setembro de 2011

Orgulho - (Contos Sistinas)



[Do frâncico * urgEli , 'excelência', pelo cat. orgull e poss., pelo esp. orgullo.] S. m. 1. Sentimento de dignidade pessoal; brio, altivez. 2. Conceito elevado ou exagerado de si próprio; amor-próprio demasiado; soberba. -  (escrito em 28/09/02) link original http://sistinas.com.br/sete-pecados-capitais.html



Sim, era um milagre. Além do entardecer, três amigos de infância se reencontraram. A última vez que se viram foi no fim da adolescência, e agora, mais de dez anos depois. Resolveram entrar em algum bar para beber, quando apareceram as diferenças que chegam com a idade: um era satanista, o outro era padre agora, e o terceiro... bem, o terceiro tinha uma visão particular do mundo.
Marco ainda usava a camiseta desbotada do King Diamond, onde se lia "Satan´s Fall", o que desagradava Solomon, que se sentou do outro lado da mesa. Ao meio sentou-se o terceiro. Parecia Jesus Cristo, com os longos cabelos desgrenhados e a barba há muito sem fazer.
-Então, você ainda continua na "Highway to Hell", Marco?
-Sim, e quem não está, padreco? - respondeu Marco, com a costumeira cara de poucos amigos - Basta estarmos vivos nesse mundo, para sentirmos o inferno...
Solomon gostava de seus amigos. Bons tempos, antes das diferentes filosofias os separarem. O terceiro era o único que não tinha escolhido nenhum caminho. Dizia-se agnóstico, mas o padre achava aquilo uma desculpa covarde para não assumir uma religião.
-Lembram-se de quando começamos a ouvir metal juntos? - recomeçou Marco, trazendo as lembranças à luz da mesinha do bar.
-Claro. Iron Maiden sempre é a primeira banda de todo mundo. Foi com "The number of the beast", não? - continuou Solomon, pareceu meio incomodado com a recordação.
-666! - gritou Marco, rindo.
O terceiro estava quieto, bebendo sua cerveja. De repente soltou:
-Lembram-se quando me envolvi com aquela gostosinha da igreja, e logo depois todos vocês namoravam moçoilas católicas como ela também?
Riram juntos, mas o padre depois continuou:
-A minha moçoila sem saber despertou minha vocação religiosa.
-Que mais ela te despertava, Solomon? Confessa! - gargalhou Marco. - Eu só pensava em transar com a minha, e como ela recusava, isso me dava mais vontade ainda!
-E você acabou comendo ou não, Marco? - perguntou o do meio.
-Pior que não! Hahahahaha! Mas foram horas de bolinações que me lembro até hoje!
-Pelo jeito só eu absorvi o que as ditas "moçoilas católicas" tinham a compartilhar, né? Ela me contou certa vez a lenda dos sete pecados capitais, querem ouvir? - perguntou Solomon.
-Eu gosto de lendas. Conte. Aliás, por que chamamos de "pecados capitais"?
-O Sr. Agnóstico não sabe? - ironizou Marco. - Até eu sei! Chamamos os pecados capitais dessa forma por originarem outros pecados. E no século IV, são Gregório Magno e são João Cassiano definiram que são sete: orgulho, ganância, inveja, ira, luxúria, gula e preguiça. Correto padreco?
Solomon acenou afirmando, até meio surpreso com a precisão secular da resposta. Então começou a contar sua versão da lenda:
"Certo dia um homem chegou do trabalho, e encontrou sete pessoas dentro de sua casa. Ficou assustado, quando um homem muito musculoso disse:
-Não tema, somos tão velhos quanto o mundo, e estamos em todos os lugares. Eu sou a PREGUIÇA, e estou aqui com meus colegas para que você escolha um de nós para sair definitivamente de sua vida...
-Mas como você é a preguiça? Tem corpo de quem malha diariamente!
-Sou forte como um touro, sim. E peso nos ombros dos fracos que sucumbem à esse pecado.
E então uma velha horripilante, encurvada e de aspecto enrugado, lhe diz:
-E eu sou a LUXÚRIA. Sou capaz de trazer doenças e morte, perverter crianças e destruir a sagrada família. - e antes que o homem argumentasse que ela era feia, se transformou numa bela mulher, dizendo: "Não há feiúra para a luxúria".
E um mendigo fedido que estava no canto da sala diz:
-Eu sou a GANÂNCIA. Muitos matam e abandonam famílias por mim. Tenho essa aparência pois não importa o quanto rico eu seja, sempre vou cobiçar e querer mais e mais.
-E quem seria você? - o dono da casa perguntou à uma mulher, linda, exuberante, que estava sentada no sofá, um corpo escultural.
-Eu sou a GULA. Ao contrário do que muitos pensam, não sou gorda e feia, pois assim seria fácil resistir à esse pecado. Quem tem a mim nem percebe. - ela respondeu.
Um velho estava sentado na poltrona, aspecto calmo, e disse, com voz serena:
-Eu sou a IRA, ou cólera, ou raiva. Tenho muitos nomes, e sou o mais comum entre as pessoas. Posso ser o avô da humanidade, que por mim matam com crueldade e destroem cidades e civilizações. Mesmo quando não apareço, posso estar guardado dentro de você, lhe causando úlceras, câncer e outras doenças.
Nisso apareceu uma princesa, a ostentação em pessoa. Vestia roupas finas, e usava uma coroa, braceletes e anéis de puro ouro.
-E eu sou a INVEJA. Não tenho ainda tudo o que desejo. Existo entre os ricos e os pobres igualmente. A inveja surge pelo que não se tem, e pelo que é dos outros. Nesse aspecto sou parecida com a cobiça... E sou uma das madrinhas da tristeza.
Ela foi interrompida por um lindo menino, sorridente e brincalhão, que perguntou ao morador:
-Quer brincar comigo? Eu sou o ORGULHO. Não se engane, não sou puro e inocente como pareço, sou tão destrutível quanto os outros pecados.
E então, vendo que precisaria mesmo escolher entre um dos sete, o morador pediu tempo para pensar... Quando voltou, tinha escolhido o ORGULHO para sair de sua vida. A criança olhou raivosamente para ele, e foi embora. Para a surpresa do homem, todos os outros também saíram junto com o menino.
-Esperem! Eu... acertei?
O menino então se voltou, e respondeu, com uma voz que não era de criança:
-Sim, fez a escolha certa. Tirou o orgulho de sua vida, e onde não há Orgulho não há preguiça, pois os preguiçosos são aqueles que se orgulham de nada fazer para viver não percebendo que na verdade vegetam. Também não há Luxúria, pois os luxuriosos têm orgulho de seus corpos e julgam-se merecedores, assim como não há Cobiça, pois os cobiçosos têm orgulho das migalhas que possuem, juntando tesouros na terra e invejando a felicidade alheia, não percebendo que na verdade são instrumentos do dinheiro.
O morador olhava atônito, e o menino continuou:
-Onde não há orgulho, não há Gula, pois os gulosos se orgulham de sua condição e jamais admitem que o são, arrumam desculpas para justificar a gula, não percebendo que na verdade são marionetes dos desejos. Também não há Ira, pois os irados têm facilidade com aqueles que, segundo o próprio julgamento, não são perfeitos, não percebendo que na verdade sua ira é resultado de suas próprias imperfeições. E por fim, não há inveja, pois os invejosos sentem o orgulho ferido ao verem o sucesso alheio seja ele qual for, precisam constantemente superar os demais nas conquistas, não percebendo que na verdade são ferramentas da insegurança.
Então saíram todos sem olhar para trás."
-Hahahahaha! Aquele "esperem, eu acertei", foi você quem colocou na lenda, né Solomon? - sorriu o do meio e o padre concordou, perguntando:
-Oras, você nunca ouviu falar de licença poética?
-Eu escolheria sim o menino, sabe? Mas não por sabedoria, apenas por um motivo louco que só minha mente saberia explicar, mas no fim... Eu escolheria o menino!
-Querem minha opinião? - disse Marco, e antes de qualquer resposta, soltou:
-O que são os tais pecados capitais, além de atos que fazemos para garantir nossa satisfação física e mental? Desculpem, mas, todos eles são manifestações de instintos. E o homem É UM ANIMAL INSTINTIVO, certo padre?
Solomon tossiu, e engasgou com a água que bebia. O terceiro apenas ficou quieto, e seus olhos brilharam com a curiosidade típica de geminiano. "Continue Marco."
-Ganância, gula e preguiça são a manifestação do instinto mais básico, a autopreservação. E luxúria? Seria também um instinto, a procriação. E para que a gula e a preguiça não acabem esteticamente conosco, o orgulho e a vaidade dão uma consertada nas coisas, percebem?
Após essa declaração de Marco, os três caíram num silêncio profundo... Sim senhor, aquela seria uma noite e tanto!

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